Especial

Leo Moreira Sá: 'Vivo a experiência da transexualidade como uma oportunidade única de se construir um novo ser humano'

O ator, dramaturgo e designer de iluminação já foi a Lou, baterista da legendária banda punk As Mercenárias; este mês, com o coletivo Cats, lançou carta-manifesto reivindicando visibilidade e trabalho para os artistas transmasculinos

12 de Setembro de 2020, 11:00

Sebage Jorge/ Editor

Se você tem mais de 50 anos como eu – e é da praia do rock’n’roll, claro –, você ouviu As Mercenárias, né. Ao lado da cantora e compositora, e poeta, Rosália Brandão (Maceió, 1958-2015), e de outros parceiros de arte e vida, parte da minha juventude vivi ouvindo pérolas não, diamantes brutos como “Me Perco”, “Polícia”, “Pânico”, “Labirinto”, “Santa  Igreja”, faixas do álbum mais irado da segunda metade dos anos 1980, “Cadê as Armas”, o primeiro dos dois discos gravados por essa banda legendária de São Paulo. Nessa época em Maceió havia uma cena dark, eu liderava uma banda pós-punk, a Sangue de Cristo. Rosália e a atriz-cantora Aline Marta Maia, o professor e diretor de vídeo Claudio Manoel Duarte, nesse calorão de capital do sol e paraíso das águas, andávamos todos de sobretudo preto. Rosália e Aline (e mais uns carinhas bacanas) fundaram outra banda antológica pós-punk nesse nosso cerco local caeté, a Pensão Familiar – que era uma espécie de simbiose de As Mercenárias e Arnaldo Baptista (“Loki?”, lembram?). Bem, esse pescoção abrindo matéria é porque a personagem da vez, da série Entrevista de Quarentena, é o ator, dramaturgo e designer de iluminação Léo Moreira Sá, que fora a Lou, baterista das Mercenárias. E é porque fazer essa entrevista com o Leo bateu, por assim dizer.

Fico muito feliz em saber que Mercenárias ainda repercute no coração de tantas pessoas”, diz Moreira Sá em nossa conversa por email. “Fico sempre muito emocionado quando alguém menciona com carinho o nosso trabalho.”

As Mercenárias (Lou está à direita): a banda pós-punk mais querida do Brasil
As Mercenárias no programa 'Perdidos na Noite', com Lou na bateria; assista aqui

Nas Mercenárias, Lou substituiu Edgard Scandurra, o guitarrista do Ira! que tocava bateria com as meninas. Sobre a transição de Lou para Leo, o artista escreveu e interpretou o espetáculo autobiográfico “Lou&Leo”, que estreou com enorme sucesso na capital paulista em 2013, retornando ao cartaz em 2017.

Depois da avalanche Mercenárias, a avalanche, digamos, continuou, e, para resumir e generalizar a história, envolveu drogas, sexo e rock’n’roll. Mas aí, finalmente, Leo mergulhou no teatro, colaborando com outro grupo radical, a Cia. Satyros. E com essa trupe reconstruiu sua vida. Dividiu com o diretor da companhia, Rodolfo García Vázquez, o Prêmio Shell 2012 de Iluminação (pelo espetáculo “Cabaret Stravaganza”) e com o dinheiro do prêmio fez a mastectomia que retirou os seios da Lou. E lá mesmo, no fervilhante Teatro dos Satyros na Praça Roosevelt (o centro underground de São Paulo) – onde atuou, também, em outro espetáculo da companhia, “Histórias para o Amor e a Verdade” –, estreou triunfante o seu “Lou&Leo”.

Leo Moreira Sá no Teatro dos Satyros, na Praça Roosevelt, centro underground de SP

Em 2014, estreou na TV, protagonizando o 12º. episódio da série da HBO “PSI”, e em 2016, no canal Space, viveu um homem cis na série “A Lei”. Está no elenco do longa-metragem de Daniel Nolasco “Vento seco”, que estreou no Festival de Berlim este ano. No Facebook, o ator comemora a formação, no filme, de “um potente núcleo de representatividade trans”. E na semana passada, sexta-feira (4), lançou, junto com o dramaturgo, ator e diretor Daniel Veiga, uma carta-manifesto performada também em vídeo. Assinados pelo Coletivo de Artistas Transmasculines (o Cats), criado pelos dois no início do ano, a carta e o vídeo reivindicam visibilidade, oportunidades e emprego para os artistas transmasculines.

Acompanhe a entrevista.

Depois das Mercenárias, você estudou teatro, entrou para um grupo bem provocador e libertário, a Cia. Os Satyros, e produziu, escreveu e interpretou uma montagem de sucesso, autobiográfica, “Lou&Leo” – que teve uma segunda temporada em 2017/ 2018. Uma virada e tanto.

Álbum lançado na Inglaterra em 2005

Leo Moreira Sá – Mercenárias não foi só um projeto musical, mas o canal de expressão de uma necessidade visceral que tínhamos de expor nossa revolta diante de um contexto ditatorial de censura e repressão policial. O primeiro disco "Cadê as Armas" (1985) traz esse tom político com a linguagem crua do punk rock e o segundo "Trashland" (1987), gravado no pós ditadura, já traz a reflexão pós-punk e questões mais existenciais. Esses dois discos foram lançados numa coletânea chamada "The Beginning of the End of the World", em 2005, na Inglaterra, e está para ser lançada no início do próximo ano uma biografia da banda, prefaciada por mim e escrita pelo jornalista Lucas Lima.

Léo mora numa chácara na companhia de cães e gatos
'São cinco cachorros e dez gatos, todos resgatados das ruas, muito mimados e amados'

Com o fim das Mercenárias, larguei a música e entrei numa fase depressiva com consumo exagerado de álcool e cocaína, que trouxe consequências trágicas na minha vida. Só consegui me recuperar quando a arte entrou na minha vida novamente. Estudei teatro e a partir de 2010 iniciei uma carreira profissional como ator na Cia. de Teatro Os Satyros, por onde consegui reconstruir minha vida. Em 2011 tive a honra de compartilhar com o diretor Rodolfo Garcia Vázquez o

Mais um da 'família de peludos' do ator

Prêmio Shell de melhor luz pelo espetáculo “Cabaret Stravaganza”. Com o dinheiro do prêmio realizei a mastectomia e defini minha identidade corpórea transmasculina. Em 2012 ganhei o edital ProAc LGBT e produzi “Lou&Leo”, me tornando o primeiro homem trans a escrever, produzir e protagonizar sua história no teatro brasileiro. “Lou&Leo” teve vida longa e foi sucesso de público e crítica, ficando por duas semanas consecutivas entre as melhores peças indicadas pelo jornal O Estado de S. Paulo. Depois de ficar seis meses em cartaz no CCSP [Centro Cultural São Paulo], Satyros I e Teatro do Ator. Fez várias apresentações nos anos subsequentes, sempre que convidado. Em janeiro de 2018 fez sua derradeira apresentação por ocasião do dia da Visibilidade Trans na Casa 1.

Você tem uma carreira em séries da TV paga... No cinema, este ano teve a estreia do longa “Vento seco”.

Moreira Sá – Depois de “Lou&Leo” passei a receber convites para participar do elenco de séries de TV de canal pago. Meu primeiro trabalho foi em 2014, no 12°. episódio da primeira temporada de “PSI”, na HBO, vivendo um homem trans que pleiteava na justiça a mudança do prenome nos documentos. Em 2018 interpretei um criminoso cisgênero na série policial “Pacto de Sangue”, produzida pelo canal Space e que hoje está na Netflix, e no mesmo ano vivi um personagem trans na quarta e última temporada de “O Negócio” da HBO.

Além de participar de vários documentários, protagonizei “Ciranda” – o piloto de uma série de curta metragens de ficção ainda inédito que está rodando o Brasil participando de festivais. Em 2019 participei do elenco de três longas: “Agreste”', “Lili e as Libélulas” e o laureado “Vento seco”, que vem amealhando prêmios pelo mundo afora.

Moreira Sá também atua no cinema e na TV paga

E quanto à TV aberta, alguma sinalização de trabalho?

Moreira Sá – Acho que a TV aberta voltada ao grande público está se abrindo aos poucos para o tema trans, mas ainda tem muito pouca demanda por artistas transmasculines porque as teledramaturgias ainda priorizam personagens transfemininas. Fiz alguns testes, mas ainda não recebi nenhuma confirmação.

Em fevereiro deste ano, portanto antes da pandemia, você e o também ator e dramaturgo – e diretor – Daniel Veiga criaram o coletivo Cats. Como aconteceu o encontro com Daniel? Vocês se conheceram este ano mesmo?

Moreira Sá – Eu participei da criação do Manifesto Representavidade Trans em 2017, que foi um movimento pioneiro de artistas da minha comunidade reivindicando o direito de interpretar personagens trans, mas percebi que não havia muita demanda pra nós, pessoas transmasculinas. Foi quando comecei a pensar que era necessário unir artistas transmasculines num grande movimento que pudesse romper com esse ciclo de apagamento de nossas identidades e carreiras artísticas. Procurei o Daniel porque sabia, através de suas postagens nas redes sociais, do seu talento e engajamento como pessoa trans e preta e no começo do ano, através de troca de e-mails, fomos aos poucos construindo o manifesto. E foi depois do suicídio do Demétrius, um jovem ator trans negro, que veio do Rio para São Paulo tentar carreira artística, que decidimos fundar o Cats em plena pandemia. Segundo um estudo realizado pela Universidade Federal de Minas Gerais, 85,7% de pessoas transmasculinas já pensaram em suicídio ou tentaram cometê-lo. Não foi por acaso que o coletivo foi fundado em setembro, mês amarelo de prevenção ao suicídio.

O filme de Daniel Nolasco, 'Vento seco', estreou em Berlim em fevereiro; assista ao trailer

Mas logo depois da criação do Cats, veio a covid-19, o distanciamento social, o cancelamento de shows e espetáculos. 

Moreira Sá – O Cats foi concebido antes da pandemia, mas foi fundado em pleno isolamento social com o manifesto lançado no dia 4 de setembro. Foi justo no momento mais difícil, com o cancelamento de projetos já em andamento e a total escassez de novos trabalhos artísticos, que a noção do advento de um coletivo fazia todo o sentido. Tomamos consciência de que só a união das nossas vidas, que foram ainda mais precarizadas pela pandemia, poderia nos salvar do perigo do isolamento que já havia levado tantos Demétrius ao suicídio. Foi com surpresa e muita emoção que vimos crescer o número de artistas transmasculines nos últimos dias.

Como a pandemia afetou você, seus trabalhos e projetos?

Moreira Sá – Foi um golpe inesperado porque tudo foi cancelado sem perspectiva de retorno. A incerteza sobre o futuro e os restritos limites de manobra para contornar aquela situação foi um teste radical de sobrevivência em meio ao caos apocalíptico que a pandemia nos lançou. Com relação ao isolamento físico, pouca coisa mudou na minha vida porque há cinco anos moro numa chácara aqui no extremo sul de São Paulo. Aliás, me senti privilegiado por ter ficado isolado aqui no meio do mato com todo esse espaço verde me abraçando. Mas ao mesmo tempo que a pandemia radicalizou meu isolamento, me fez também conectar com o mundo exterior. Por conta de uma participação no elenco de um espetáculo online concebido pela dramaturga Ave Terrena, o "Mil e uma Noites Século Trans21", contratei uma internet mais rápida e de repente fiquei conectado 24 horas por dia. Fui selecionado pelo edital “Sesc Cultura ConVida” para apresentar a gravação comentada do meu espetáculo autobiográfico “Lou&Leo”  e de forma surpreendente os convites começaram a chegar.

Com Ave Terrena e Daniel Veiga: teatro e militância

Este momento de pandemia, de destruição de direitos, de desmatamento, de genocídio, de exacerbação da violência contra indígenas, negros, mulheres, LGBTQI+, sem dúvida norteou o conteúdo da carta-manifesto lançado na sexta-feira (4).

Moreira Sá – O acirramento das forças conservadoras da extrema direita no Brasil, que tem trabalhado para desmontar as duras conquistas em direitos humanos, conseguiu minar de certa forma as lutas sociais, mas por outro lado construíram também um cenário propício e de urgência para a gestação de novos projetos sociais como o Cats. 

E como você se cuida? Mora sozinho? É casado?

Moreira Sá – Fui casado quase metade da minha vida e há dez anos conquistei minha liberdade e a minha solitude vivendo com minha grande família de peludos – cinco cachorros e dez gatos, todos resgatados das ruas, muito mimados e amados. Na verdade, sou muito exigente em relacionamentos porque não curto apenas ficar com alguém. Gosto de relações mais profundas.

Como foi a repercussão do lançamento da carta-manifesto, o coletivo já fez uma avaliação, obteve retornos?

Moreira Sá – Contrariando todas as expectativas pessimistas do lançamento de um grupo de artistas transmasculines no atual contexto político e social, foi um sucesso incrível com grande repercussão nas redes sociais. Contamos com a valorosa ajuda da Vicente Negrão Assessoria e sua equipe fantástica chefiada pela querida Biba Fonseca, que tem nos presenteado com uma divulgação profissional.

'Continuo desconstruindo o CIStema que me gerou...'

Quais os próximos passos?

Moreira Sá – Consolidar com ações efetivas essa grande conquista que é o Cats, fazendo com que todos as reivindicações e metas propostas no manifesto comecem a se concretizar o quanto antes. Estruturar a organização interna de forma democrática para que todas as vozes sejam ouvidas e para que todas as expressões artísticas tenham espaço nos canais do coletivo. Para isso fazemos reuniões quinzenais em que as propostas são apresentadas e aprovadas por voto. Sinto que um dos maiores objetivos do coletivo já foi consolidado: unir, visibilizar e mostrar para a indústria do entretenimento que artistas transmasculines existem e resistem a todas as formas de transfobia que insistem em nos desqualificar e invisibilizar. Não existe mais nenhuma justificativa para sermos ignorados nos projetos que envolvem narrativas trans.

Em 2013, você dizia que era “um ser humano em formação”. Hoje, na vida e na arte, o que você diz?

Moreira Sá – Na arte tenho planos não só como ator, mas também como dramaturgo, porque nós precisamos também escrever nossas histórias que sempre foram contadas por pessoas cis completamente alheias às nossas vivências. Continuo "um ser humano em processo" desconstruindo o CIStema que me gerou e articulando formas políticas e redes de afetos que possam fazer frente à transfobia estrutural que insiste no apagamento das nossas identidades e expressão artística. Vivo a experiência da transexualidade como uma oportunidade única de se construir um novo ser humano e uma sociedade mais justa pra todos, todas e todes. Vamos à luta!