Lugares

Menina da Avenida

'Você abriu os olhos, mas não acordou por inteiro; parecia dormir o sonho do que havia vivido, sentada no banco da Praia da Avenida' – Para Hermezita

21 de Janeiro de 2021, 09:53

Lúcio Verçoza/ Colaborador

Quando a sua memória falhou, quis que você não se esquecesse das canções do Caymmi. E tocava o mar da manhã, e tocava o mar da tarde e tocava o mar da noite e tocava o som do mar de algodão. Você ria e dizia sobre como essas músicas eram delicadas. – Essa música é muito delicada. Você repetia isso incontáveis vezes, esquecendo que havia dito a mesma coisa poucos minutos antes.  

Quando você não despertava mais, colocamos em teu quarto o som do arrebol. O arrebol da manhã, com o som do terral; o arrebol da tarde, com o som do maral; o arrebol do infinito, com o som do coração.  Você dormia, e passava a noite e passava o dia, e você não vinha. Eu e sua prima cantamos a música que você fez no entardecer da infância: 

Hermé Vasconcellos: juventude na orla de Maceió

Vai meu mar, minha vida 

Minha praia da Avenida 

Diz a ele o meu amor: 

Que eu sou uma menina da Avenida 

 Que busca o amor 

Junto ao seu menino 

Olhando ao longe o azul do mar. 

Você abriu os olhos, mas não acordou por inteiro. Parecia dormir o sonho do que havia vivido, sentada no banco da Praia da Avenida e curtindo a brisa do seu mar – numa época em que a praia era limpa e na qual o Hotel Atlântico era o refúgio da família Miranda. Você não acordava, mas seguia viva. 

Nostalgia: a orla da Praia da Avenida com seus espelhos d'água e o requinte que se foi
Quando a Praia da Avenida era limpa e o Hotel Atlântico era o refúgio da família Miranda
Hermezita (sentada à esq.) no Teatro Universitário de Alagoas, início dos anos 1980
O imponente Hotel Atlântico na Avenida da Paz nos anos 1960
A médica ultrassonografista com o editor Sebage Jorge

Foi somente dias depois que você acordou do sonho profundo, acordou balbuciando uma música que falava sobre algo que ainda estava para nascer, algo que ainda não chegou, sobre um grande poder transformador. E nós te escutamos, como se sua voz nunca tivesse sido tão sua e ao mesmo tempo tão nossa. 

Vai meu mar 

Dar a ele o meu recado. 

Banha mar 

As areias da praia 

E banha os meus pensamentos, 

Enche eles todos de amor. 

PS: No dia em que você acordou, no dia em que a longa espera cessou, foi uma grande festa. As estrelas do céu e as estrelas do mar cantavam: Ela se recuperou/ Ela se recuperou/ Aiêê, ela se recuperou/ Ela se recuperou/ Ela se recuperou/ Aiêê, ela se recuperou. Sem teto, o piso das ruínas do Hotel Atlântico escutava as estrelas e cantava com elas.