Cultura

Eduardo Bastos traça a radiografia de Maceió em aquarelas sobre arquitetura, cultura popular e miséria social

A exposição '360º', em cartaz no Complexo Cultural Teatro Deodoro, no centro da capital, pode ser visitada no horário comercial somente até o domingo (28)

22 de Julho de 2019, 11:23

Jorge Barboza/ Editor

Em cartaz desde 23 de maio na galeria do Complexo Cultural Teatro Deodoro, a exposição “360º”, de Eduardo Bastos, reúne uma diversidade de aquarelas em que o artista expõe sua intimidade com a cidade de Maceió – seu patrimônio arquitetônico; seu passado esquecido; sua cultura popular identificada nos diversos brincantes alagoanos do guerreiro ao bumba-meu-boi; sua grande música desde Hermeto Pascoal aos tocadores de pife de Marechal Deodoro; sua grande literatura (Graciliano, Jorge de Lima) e, especialmente, seus mendigos e deserdados sociais que ele identifica numa das séries mais pungentes da mostra, “Invisíveis”.

Esse banho de criatividade e sensibilidade num imaginário cultural maceyorkino (para usar a expressão cunhada pelo crítico Ricardo Maia, a nos ensinar sobre essa nossa complexidade artística e comportamental no contexto da urbe), e numa representação da realidade com tanta poesia, você pode verificar apenas esta semana, até o domingo (28), quando se encerra a exposição, que é a segunda individual de Eduardo Bastos a conferir-lhe o status de mestre ou simplesmente de artista engajado com o próprio ofício e, ademais, com as injustiças sociais. E essa parte é especialmente muito bem-vinda nesse momento político em que perigamos à beira de um precipício fascista – se é que já não afundamos todos a reboque das bestialidades em voga no Congresso Nacional.

A mostra ocupa os dois andares da galeria do Complexo Cultural/ Foto/ Jorge Barboza

“A exposição ‘360º’ de Eduardo Bastos é uma realização que já vínhamos acalentando há muito tempo. Sua obra exala poesia visual, sensibilidade. Suas cores suaves nos revelam a nossa cidade com maestria, tanto ao retratar prédios históricos quanto as favelas encrustadas nos morros da atualidade – e também através do rosto sofrido, maltratado pela invisibilidade social, dos rostos célebres de grandes personalidades de segmentos diversos”, pontua o gerente artístico do teatro e complexo cultural situado à rua Barão de Maceió, 375, centro da capital (na Praça Deodoro).

O próprio Eduardo, à época da estreia de “360º” enunciou: “Eu busco referências na Maceió da minha infância e adolescência, uma cidade linda que guardo boas recordações. Era mais limpa, mais arborizada – o seu patrimônio arquitetônico preservado, enfim, sinto saudades dessa cidade. Mas nunca deixei de amá-la. Acho que sou um cronista urbano, me expresso através de traços e cores, buscando a representação da cidade e de sua gente, daquilo que me emociona ou me incomoda.”

Influências de Aldemir Martins, Carybé, Di Cavalcanti e Portinari/ Foto/ Jorge Barboza
Identidade alagoana/ Foto/ Jorge Barboza

Para visitação, a galeria fica aberta de segunda-feira a sábado, das 8h às 18h; na quarta-feira, das 8h às 20h, e no domingo, das 14h às 17h. Para o agendamento de grupos de escolas e instituições sociais, você pode ligar para o (82) 98884 6885 ou enviar e-mail para [email protected].

Acompanhe a entrevista de Eduardo Bastos ao Alagoas Boreal.

Ao menos uma das obras expostas uma forte referência de outro artista visual nordestino, Aldemir Martins, cearense, que ilustrou em 1963 o clássico “Vidas secas” de Graciliano. Que outras inspirações podemos enxergar na sua obra?

Eduardo BastosEm relação à temática regionalista, gosto de Carybé, Di Cavalcanti e Portinari, além de outros. Mas esses são os que mais me encantam e inspiram.

Nesse contexto, das vidas secas de Graciliano, você traz os personagens “invisíveis” de uma série que é, talvez, a mais comovente da exposição e que já vinha sendo explorada desde sua primeira individual há dois anos.

Um olhar sobre o guerreiro e outros brincantes

BastosA série “Os Invisíveis” surge de uma inquietação antiga. Queria fazer a série, mas sempre procrastinava. Até que um dia de feriado, fui desenhar no centro da cidade. Lá encontrei um mendigo cadeirante que estava dormindo sob uma marquise. Ao lado, havia uma vasilha e um pedaço de bolo que alguma alma solidária havia deixado para ele. Me posicionei para desenhar um casario antigo bem à frente e vi quando ele acordou. Fiz de conta que não o percebi, mas logo me desejou um bom dia e com um sorriso me ofereceu um pedaço do bolo. Eu agradeci e perguntei se poderia desenhá-lo. Logo ele fez uma pose com um dos polegares voltado para cima. Eu disse para ele comer o bolo, pois que não tinha pressa e ele saboreou o lanche como se aquilo fosse um banquete. Me falou que seu nome é José Cícero e fez novamente uma pose. Comecei a desenhá-lo de maneira rápida para não cansar o meu modelo. Depois conversamos um pouco sobre nossas vidas e me despedi dando a ele o pouco do dinheiro que tinha – disse que era o pagamento, ainda que de forma modesta, por ele ter posado para mim e disse que modelos ganhavam para isso. Saí dali fortalecido e envergonhado com a imagem daquele homem na cabeça. Ainda hoje guardo o desenho do José Cícero – toda vez que acho que a vida está uma merda, olho para ele. O título "Os Invisíveis" vem à mente quando vejo uma reportagem na TV sobre moradores de rua e a repórter diz que eles são como pessoas invisíveis – aí achei muito propício. Mas, não há nada de original nisso, a miséria e as injustiças sociais já foram tratadas de maneira mais sublime por Van Gogh, Picasso, Portinari.

Eduardo Bastos estudou com o mestre Pierre Chalita, entre outros

Talvez essa série agora precise de uma continuidade, ou melhor, de uma extensão tipo “os exploradores”, “os canalhas”, “os algozes”...

BastosQuanto aos causadores dessa situação desumana, os tipos que você citou – canalhas, exploradores... Não havia pensado ainda... Está aí uma boa ideia (risos).

Você estudou arquitetura e isso está estampado nas duas exposições que realizou, demonstrando o patrimônio histórico e arquitetônico, a paisagem urbana de Maceió. Claro, você estudou artes visuais, os grandes mestres, mas isso foi na escola ou em casa?

Com a pesquisadora Socorro Lamenha: parceria desde a primeira exposição, 'Ver a Cidade'

BastosEu tive uma formação acadêmica, na escola de arquitetura, estudando a perspectiva, luz e sombras, o uso da cor, seus efeitos etc. Tive a felicidade de encontrar bons mestres, como Pierre Chalita, Salles Tenório, Márcio Lupion, que me deram ensinamentos valiosos. Mas me apeguei a uma frase que li certa vez: "O desenho não se ensina, se aprende". Aí comecei a praticar ainda mais, pois já era um vício, desenhava desde a infância.

A aquarela é a sua técnica primordial?

BastosJá fiz muita coisa com óleo sobre tela, mas o solvente estava me deixando nauseado. Gostava de mexer com tinta óleo porque demora a secagem e tu podes ir corrigindo os problemas. Atualmente gosto de experimentar diversas técnicas, como o acrílico, pasteis secos e oleosos, carvão, nankin sobre qualquer suporte. Mas, a minha paixão é a aquarela.

Agora a exposição saindo de cartaz, quais os planos do artista? O que tem em mente para os próximos dois anos?

BastosA exposição estava prevista para sair de cartaz em 21 de julho, mas o Alexandre Holanda sugeriu que ficasse mais uma semana. Acredito que o público reagiu bem, tenho recebido elogios que acredito sinceros (risos). Recebi um convite para uma exposição coletiva que acontecerá em setembro. Para ser sincero, não tenho nenhum plano: vou continuar dando aulas de desenho no curso de Design de Interiores do Ifal [Instituto Federal de Alagoas] e se aparecer algum outro convite estou aberto.