Lugares

Perdidos em rotas incertas, seguíamos por cem quilômetros em direção ao Norte e à fazenda Paraguaia

'Imaginei uma proprietária imigrante do Paraguai; não deu nem tempo de imaginar o rosto da jovem senhora'

06 de Julho de 2021, 10:14

Lúcio Verçoza / Colaborador              

Para o Norte. Era isso. Para o Norte. As rodas de nossas bicicletas, os pedais nos levavam. A sensação de que só dependíamos de nossas forças e da bicicleta. Nós alcançávamos o mundo. As trilhas eram o mundo. A esquina ainda não conhecida era o mundo.

O que mais gostávamos eram os caminhos de barro. Os mapas imaginados com base em sonhos e experiências de anteontem. As rotas incertas. O senso de direção sem bússola, olhando para o sol, procurando o mar no horizonte, o leste no horizonte. Percorrendo mais de cem quilômetros no mesmo dia. Comendo banana e ovos cozidos. Perdidos em trilhas circulares. Labirintos em estradas de caminhão ou caminhos de gente. O fio de Ariadne era o nosso mistério. Chegando em casa melados de poeira e carregando histórias e sentimentos dos mais diversos. Fraco e forte, grande e pequeno, potente e arrogante, pequeno e humilde, resignado e desesperado, corajoso e louco.

Íamos a 25 quilômetros por hora: foi quando passamos pela porteira da Fazenda Paraguaia

Certa vez, quando ainda éramos chamados de meninos, voltávamos do Norte em direção ao Sul. A trilha era de barro. Mata rala. Às vezes um pouco mais fechada. Plantações de macaxeiras. Ladeiras, ladeiras, grotas, plano, ribanceiras, rieiras. Na época não dominávamos a técnica do pulo. Pular valas e buracos com bicicleta é uma arte que se aprende amassando rodas e ralando os joelhos e cotovelos. Estávamos no meio da trilha – um pouco depois do meio da trilha. Trilha de caminhão de cana, de caminhonete e de carros velhos de pequenos sitiantes. Estimávamos todos os tipos de trilha. Sobretudo as de caminho de gente. Desenhávamos linhas no barro cortado. Entre as pernas, a bicicleta. Nos olhos o desejo de liberdade. O que queríamos ver e alcançar estava na próxima curva. Na próxima ladeira.

Era já fim de tarde. Era volta. Era quase sereno. Conversávamos sobre qualquer coisa, coisa qualquer. Os caminhos nos diziam algo. Nós falávamos algo pelo caminho, pedalando. Não lembro o que era. Estávamos despreocupados. Sem as mãos no guidom. O caminho era o nosso guia. O rastro de outros passantes era o nosso fio de Ariadne.

Deitamos ao pé da Paraguaia, contemplamos o corpo da ladeira, sentido as nossas almas

Íamos, mais ou menos, a 25 quilômetros por hora. Foi quando passamos pela porteira da Fazenda Paraguaia. Imaginei uma proprietária imigrante do Paraguai. Não deu nem tempo de imaginar o rosto da jovem senhora. Os cachorros latiram. Latiram como se quisessem vingar o que o Exército brasileiro fez com milhões de almas do povo paraguaio. Latiam em guarani. Com o vigor de jovens da Ciudad Del Leste. Pedalamos com força. Gabriel tentou avisar o que viria. O hálito quente dos cachorros ladrando empurravam nossas pernas, nossos pés no pedal. Eu não imaginava o que estava por vir. Muito menos Tomás.

Entrei na ladeira da Paraguaia a 45 por hora. O chão cada vez mais íngreme, os buracos fundos, os 74 km por hora como um repente, a ponte de madeira com fendas no fim da descida, a vista que não via mais nada, o beijo da namorada, o capacete de isopor forrado de capa roxa e tremida, as luvas que não cobriam a metade dos dedos, o chão sem mertiolate, o cachorro que late, o vento na face que assobia, o átrio que bate sem margem, o cheiro dos percevejos, os dedos nos freios como se fossem patas duras de caranguejos, uma rabeada de rabo de foguete, a poeira subindo e a bicicleta quase caindo, um medo que nos atrai, o gosto pelo perigo, a relva como uma cama, o céu sem poste e horário como um abrigo.

Deitamos ao pé da Paraguaia, contemplamos o corpo da ladeira e sentíamos as nossas almas. Entre nós não havia capitão e nem Duque de Caxias. A beleza estava em não ter medalhas. Nossas almas vibravam como o coração da Paraguaia, que nos observava deitados aos seus pés: na outra margem do rio.