Domingo no Parque

A moça de sapatos vermelhos

Sai do cinema; à deriva, as ruas do centro parecem todas iguais; as pedras sujas do chão; olhando para o chão; caminhando sem destino na cidade grande, um sapato vermelho; só pode ser ela

12 de Junho de 2022, 11:23

Lúcio Verçoza é sociólogo, professor e autor do livro 'Os Homens-cangurus dos Canaviais alagoanos'

Os sapatos vermelhos. Os cabelos longos. Era ela. Não, não era. Cruza o Viaduto do Chá. Os passos ligeiros. Os sapatos vermelhos tamanho 34. Os cabelos longos tocando a cintura. Só pode ser ela. Ele se aproxima. Uma panela de água em ebulição sobe pela sua barriga e lhe tira o ar. Ele acelera o passo. Cria coragem. Encosta a mão em seus ombros. Não, não é ela.

A cidade é grande. Ele se sente miúdo e migrante. Na verdade ele é migrante e não encontra ela. Ela que é da cidade grande. Ela que lhe deu um beijo dias antes, em um bar próximo ao viaduto. Ela que sorriu com naturalidade e se despiu sem constrangimentos. Ela que ele não encontra mais e que o faz vagar pelas ruas de São Paulo perdido em pensamentos.

Tristeza não tem fim/ Felicidade sim; os versos parecem feitos para ele

Entra no cinema. Na tela, o recém-lançado “Orfeu negro”. O cinema grande. As cadeiras aveludadas. Das imponentes caixas de som saem a harmonia e os versos “Tristeza não tem fim/ Felicidade sim”. Pareciam feitos para ele. “A felicidade é como uma gota de orvalho numa pétala de flor”. Na tela o morro, o mar e o amor impossível. “Voa tão leve, mas tem a vida breve/ Precisa que haja vento para voar”. 

Sai do cinema. À deriva, as ruas do Centro parecem todas iguais. As pedras sujas do chão. Olhando para o chão. Caminhando sem destino na cidade grande, um sapato vermelho. Olha para cima. Os cabelos longos. O jeito desinibido e blasé de andar. É ela! Só pode ser ela. Acelera o passo. Encosta a mão no ombro dela e, nesse instante, o tempo para. Por um segundo, o tempo parou. No exato instante em que ele achou que a moça era ela. Depois, o tempo correu novamente. E uma nova sessão do cinema começou. Começou como se fosse a primeira e a última. Começou como se o mundo iniciasse e acabasse calçando sapatos vermelhos e usando cabelos longos.