Domingo no Parque

Bruno Berle: um artista que canta macio como algodão

Ele saiu de casa somente com o instrumental e algumas moedas no bolso e voltou com pão, versos e canção

03 de Julho de 2022, 16:21

Lúcio Verçoza é sociólogo, professor e autor do livro 'Os Homens-cangurus dos Canaviais alagoanos'

As cidades precisam de passarinhos, mesmo que elas não saibam. As cidades necessitam de poetas, ainda que muitas vezes elas os desconheçam. O ninho com maresia e sargaço de Lêdo Ivo, a urbe ranheta e esquelética da concisão de Jorge Cooper, a Maceió lacustre e negra de Jorge de Lima pariu um de seus mais novos poetas. Poeta com asas humanas e voz de passarinho. Seu nome é Bruno Berle: um jovem que toca violão e se deixa tocar pelo piano de cauda, um artista que canta macio como algodão.

Quem o vê calado na fila do pão não sabe que pode estar compondo. Foi assim que se deu com “O Nome do meu Amor”, faixa do seu mais recente disco, intitulado “No Reino dos Afetos” — recém-lançado pelo selo inglês Far Out Recordings. Ele saiu de casa somente com o instrumental e algumas moedas no bolso e voltou com pão, versos e canção. E quem é Berle na fila do pão? É alguém guiado pela bússola da intuição sonora, que tanto ele escuta. Os versos são conduzidos pela sonoridade.

A cidade como descoberta juvenil, esquecimento e lembrança/ Foto/ Clipe 'Lembrança'

Certa vez o antropólogo Edson Bezerra o definiu como o Fernando Pessoa das melodias, pois suas composições transitam por variados heterônimos; do rock doce e dançante da banda Troco em Bala à tropicália-afetiva formada pelo encontro do litoral com o agreste do The Mozões (disco-movimento feito por um coletivo de artistas); do folk articulado a referências da MPB no álbum solo “Arapiraca-Maceió” aos beats que misturam elementos do pop contemporâneo com pulsões de cantos ancestrais — como na música “Lembrança”, escrita com seu parceiro Batata Boy. Eu diria que não é apenas a diversidade melódica que o aproxima do poeta português. É que no fundo Berle é como Pessoa: alguém que vive para criar. 

Sua verve não fica somente nas gravações de áudio (inclusive, incorporando o som do galo que canta no quintal do vizinho, pela madrugada adentro), ele também se realiza com uma câmera caseira na mão e uma ideia na cabeça. Cruzando avenidas, faróis de carros, postes que iluminam uma carroça, a boca que encontra o gargalo da garrafa de vinho, o sorriso largo do amigo, a gélida arquitetura da portaria dos prédios da Ponta Verde, as fachadas de lojas fechadas, a entrada da padaria aberta, as jangadas na areia, o som das ondas quebrando e o fumante solitário que anseia pelo anonimato no escuro da praia. Isso tudo vai parar no Youtube em clipes vistos por crianças, jovens e adultos. Fica ali para quem tem olhos para ver: a cidade como descoberta juvenil; a cidade também como esquecimento e lembrança.

Sozinho, ou com seus jovens parceiros musicais (que parecem de longa data), ele “se deita nas nuvens inquieto”, “dança no céu sob estrelas” e leva o cheiro de pitanga da rua onde um dia morou. Nós, quando o escutamos, batemos asas, miramos as nuvens e também nos inquietamos. Como se o canto de Berle estivesse em nossa pele. Como se sua música fosse parte da cidade partida (e ela é).

'No Reino dos Afetos', um disco sobre anseios vitais

Berle não precisa pedir: “Rei da voz afina o meu canto/ Com os anjos eu quero cantar”. Sua voz já tem tal delicadeza. E seu canto agora chegou de vez em outras paragens. Este ano fez uma belíssima apresentação no Bona, em São Paulo. O espetáculo, que contou com a participação especial de Dora Morelenbaum, Zé Ibarra e Batata Boy, terminou com um “mais um!” que não tinha fim. Fez lembrar a apresentação hipnótica do Festival Carambola, junto a Dora, em 2021. No repertório do Bona, composições autorais e de jovens artistas como João Menezes, Phylipe Nunes, Batata Boy, Dora Morelenbaum, Zé Ibarra e Tom Veloso. Se Criolo estivesse na plateia, diria: “Sim. Existe amor em SP”.

Recentemente, se apresentou na prestigiada casa Blue Note, também em São Paulo. Não pude ir — fui impedido por dois mil quilômetros de distância física. Caso Dimas Marques estivesse por Sampa, certamente teria encontrado uma forma de filmar e colocar na rede, no imprescindível canal Alagoas Musical. Mesmo sem ver a filmagem que o Dimas não pôde fazer, imagino que deve ter sido fascinante. Basta tomar como referência as apresentações anteriores. 

Depois desse longo arrodeio, o ponto é: agora chegou a hora e a vez de Bruno Berle. Seu novo álbum, “No Reino dos Afetos”, é belo e delicado com uma bromélia deitada no tronco de um visgueiro. Essa imagem só pode ser compreendida por quem já viu uma bromélia no visgueiro, ou por quem escutou o álbum. As músicas transitam do pop ao violão intimista, do rock indie às raízes africanas, do experimentalismo de gravações caseiras à bossa nova. Caminham por essas variadas tendências sem se reduzir a elas, pois carregam algo original; que é o jeito berleano de sublimar sentimentos em sons.

Ele disse que o disco foi criado em busca da beleza. Poderíamos adicionar ainda a procura por leveza e pelo amor. É essa sensação que fica ao ouvir. Um disco sobre anseios vitais. Vitais, sobretudo, em meio à intranquila travessia do cabo das tormentas que insiste em se prolongar, que insiste em parecer eterna. Mas eterna, mesmo, só a boa canção. E Berle sabe disso. Sendo assim, inventa beleza, leveza e amor nas canções, como quem inventa o cais. E agora, chegou a vez de ele se lançar.