Domingo no Parque

O choro como descoberta da arte

Depois de chorar, enxugou as lágrimas e se compadeceu por quem não chorava diante daquele quadro

10 de Julho de 2022, 17:49

Lúcio Verçoza é sociólogo, professor e autor do livro 'Os Homens-cangurus dos Canaviais alagoanos'

Quando Ivo viu Guernica frente a frente, chorou. No término da primeira infância havia ficado maravilhado com a tela do Monet, no Masp. Também perdeu o ar em exposições do Portinari e da Tarsila, com os imensos murais do Rivera e com os quadros meio surrealistas da Frida. Mas nada igual ao que sentiu quando olhou pessoalmente Guernica, a obra do Picasso. O tamanho do quadro, as expressões do horror da guerra, a vela precariamente acesa, o medo, a força e a beleza da arte em meio ao horror. Chorou de não se conter. Chorou de soluçar. Não sabia que um quadro era capaz de despertar tais emoções. Chorou e riu emocionando por sentir sua própria emoção diante da tela. Era como se a pintura fizesse ele sair de si, e ao mesmo tempo o levasse ainda mais para dentro de si. Depois de chorar, enxugou as lágrimas e se compadeceu por quem não chorava diante daquele quadro.

O choro como descoberta da arte

Quando Júlia ouviu Mercedes Sosa pela primeira vez, não queria mais parar de escutar. Conhecia toda a coletânea do Chico: “Cronista”, “Amante”, “Político”, “Malandro” e “Trovador”. Conhecia Elis cantando “Arrastão” e “Fascinação”. Sabia de cabo a rabo as músicas do Milton e os primeiros discos da Gal e do Geraldo Azevedo.  Seu estudo voluntário era se perder na coleção de discos dos pais, dos CDs aos LPs. Com as músicas, aprendia poesia, história, geografia e sociologia. Escutava Hermeto e Led Zeppelin na hora de dormir, e deixava de dormir para continuar ouvindo. Com Mercedes Sosa, ela sentiu uma voz que penetrava no fundo de sua alma, a ponto da alma querer sair do corpo para se fundir com a música. O arrepio dos pelos era o arrepio da alma se expandindo. E ela, pela segunda vez na vida, chorou sem saber por que estava chorando. 

Leram juntos o conto sobre a moça de cicatriz no queixo

Gabriel, quando leu o poema “Tabacaria”, nem percebeu que a sirene da escola já havia tocado. Continuou lendo o mesmo poema uma, duas, três vezes. Ele e Murilo liam e reliam o poema do Pessoa e o conto do Galeano sobre a moça de cicatriz no queixo. Foram acusados de gazear a aula. Ficaram de castigo e perguntaram se poderiam levar um livro. A diretora proibiu, pois um bom livro nas mãos deles seria diversão, não um castigo. Desde então, ambos descobriram outros autores: de Clarice a Graciliano; de Carolina Maria de Jesus a Gógol. E choraram juntos quando leram “O Cão sem Plumas”, do João Cabral de Melo Neto. Nesse meio tempo, se meteram a escrever suas próprias histórias e as chamaram de filosofia.

Jairo, Jacira, Lívia e Olívio. Quantos Drummonds?  Drummond só há um, e há vários. Ana, Liandra, Camila e Bebeto. Quantos Hermetos? Hermeto só há um, e há vários. Analice, Conceição, Maitê e João. Quantas Clarices? Clarice só há uma, e há várias. Olga, Sirlene, Carlinha e José. Quantos J. Borges e Van Goghs? Apenas dois, e há vários. Jimmy Page, Elomar, Betânia e Graciliano... Todos humanos, finita e infinitamente humanos. Chaplin, Ziraldo, Clementina e fulano... Humanos, nem mais e nem menos que humanos.