Domingo no Parque

Surfe e ritos

Alheio aos rótulos, o surfista acorda de madrugada, monitora o vento, tira a aliança, se benze três vezes e segue seus ritos

17 de Julho de 2022, 16:48

Lúcio Verçoza é sociólogo, professor e autor do livro 'Os Homens-cangurus dos Canaviais alagoanos'

Madrugada. Luzes dos postes acesas. Retira a aliança da mão esquerda. Devagar. Para não acordar quem dorme. Abre a porta sem fazer ruído. Antes de fechar, deixa um bilhete sobre a mesa. Sai escondido. Silenciosamente escondido. Anda pelo asfalto. Pisa na areia fina da praia. A areia apita. A testa do sol aparece no horizonte. Os olhos do sol prestes a observar o dia. Se benze três vezes, pede licença e entra no mar. 

O surfe tem seus rituais. Retirar a aliança é um deles. Se ela estiver folgada no dedo, Iemanjá leva. Observar o vento é outro. Se está terral, a onda fica lisinha, formando um véu quando a crista se lança. Um véu de água que lembra o véu de noiva. Novamente a imagem do anel e do altar: se esquecer de tirar do dedo, as águas levam. E é difícil que a esposa, ou o marido, compreenda por que se chegou em casa sem aliança, ainda mais depois de uma manhã de tanto prazer fora do recinto doméstico. É quase impossível não se sentir traída(o). No caso do surfista que perde a aliança, é quase impossível não se sentir traindo — a não ser que seja um casal de surfistas.

Está terral: onda fica lisinha formando um véu quando a crista se lança/Foto/Douglas Lima

É, tem coisas que somente sufistas podem compreender. O grito de “wohoo”, por exemplo. Quando a onda rainha quebra varrendo a arrebentação, ou quando se completa um tubo, é difícil não gritar: “wohooo!”. Pode até parecer abobalhado para quem não surfa, mas tudo muda se compreendermos que se trata de um gesto ritual, tão importante quanto grito de gol para os amantes do futebol. O gol é o grito de gozo depois de uma enorme carga de tensão acumulada. O “uhhh!”, da bola na trave, é o grito de quase gol, de quase gozo. Ainda que haja semelhanças, é preciso reconhecer diferenças entre os ritos. É que quem grita gol se sente em campo com o seu time, mas não toca na bola — a não ser que ela vá parar na arquibancada. E quem grita “wohoo” está no mar e sobre as ondas. No surfe não existem dois times em oposição. Há apenas a pessoa, a prancha e o mar. Apesar das diferenças, o ponto é que o “wohoo” é tão incontrolável quanto o grito de gol.  

Se benze três vezes, pede licença e entra no mar

Nas partidas de tênis, é comum os jogadores gemerem: “Uaammm!” “Oeennn!” “Ahhh!”. Gustavo Kuerten era um mestre nisso. Sem gemido, a partida perderia a graça e o jogador se desconcentraria. Nos espetáculos de música, a plateia costuma pedir “bis” e “mais um” em alto e bom som. Se não pede, é porque não foi tão bom assim. O mesmo vale para o “wohoo”, é um grito de satisfação e liberação. Um mar clássico sem o som do “wohoo” seria o mesmo de estar na missa e não ouvir “amém”, de estar no teatro e não escutar aplausos.

No caso do surfe e dos seus rituais, o templo e o palco são o mar. O altar e o espetáculo são as ondas. O sagrado é a natureza e o profano é ter que retirar a aliança de manhã cedo. O profano é chegar no trabalho bronzeado e com o sorriso largo, enquanto os colegas estão geralmente pálidos e com o rosto fechado. O profano é que caminhar sobre as águas gera prazer inimaginável. E esse bem-estar faz com que o surfe, para quem surfa, seja algo sagrado. E o sagrado exige um tipo de entrega que parece, para quem não o vivencia, coisa de abobalhado. Alheio aos rótulos, o surfista acorda de madrugada, monitora o vento, tira a aliança, se benze três vezes e segue seus ritos.