Domingo no Parque

Telma César e o rebolinho de maniva da memória

Ela é dessas raras artistas narradoras, que nos fazem mergulhar no universo simbólico de onde viemos e somos parte

24 de Julho de 2022, 10:32

Lúcio Verçoza é sociólogo, professor e autor do livro 'Os Homens-cangurus dos Canaviais alagoanos'

Fui ao “Pedra de Raio”, de Telma César. O Teatro de Arena estava lotado. Logo de chegada, a artista sozinha no palco. Ela sentada, a alfaia em seu colo e um canto marcado pelo silêncio e pela batida do instrumento. Telma começou via silêncio e singeleza de um único instrumento, porque aquele espetáculo era de narradora. E para começar um espetáculo dessa natureza, é preciso que a comunidade de ouvintes seja convidada a escutar.

Após o prelúdio com voz e alfaia do “Canto de Jandaia”, a plateia estava pronta para ouvir; pronta para apreciar atentamente o que viria. E outras artistas foram subindo ao palco. Mulheres com percussão, ganzá, pandeiro, violão e baixo elétrico. Telma César prosseguiu, narrando com canto, dança e graça uma história que existia desde muito antes dela. Fez de tal modo que, “como a mão do oleiro na argila do barro”, imprimiu sua marca de artista a história que lhe fora herdada. Era isso que Walter Benjamin diria se estivesse na plateia, diria exatamente o que quem estava lá sentiu. Com versos colocados em melodias consagradas, o público aprendeu sobre os traços das mestras e mestres de certas escolas do coco, que acham bonito quando colocam outros versos em suas melodias — numa espécie de meu, que, só é meu, por também ser nosso.

A imaginação poética e o segundo da imagem

No meio do espetáculo, Telma convidou outras artistas. E era um pífano que subia no palco para assobiar. E era um violoncelo que entrava para o dito erudito conversar com o popular. E era o violoncelo debulhado em rabeca, Telma com os dedos na pele do pandeiro e Dona Benedita cantando com voz cortante, de facão que viveu safras: “Choveu no Norte a usina vai moer/ Se Deus já mandou chuva para essa cana crescer/ A cana tá madura e o corte vai começar/ Bote a cana na moenda e deixa a moenda rodar/ Usineiro está contente que ela lhe deixou fartura/ Eu cortava a cana doce e a minha vida era amargura”. E a plateia emocionada, aplaudindo de pé. Por mais de uma vez, aplaudindo de pé.

As músicas entravam à medida que a narrativa pedia. É assim que os exímios narradores fazem, escolhem com atenção a ordem de cada parte da história — sob o risco de perder o fio do fluxo narrativo. Telma César sabe da hora de canto introspectivo, e da vez do dançante e extrovertido. Falou de quando na adolescência ouviu sobre a influência das ciganas do Egito na música do Nordeste Oriental brasileiro, soltou um versinho antigo e emendou com um lindo coco-flamenco de sua autoria. Contava causos preciosos da Mestra Virgínia Moraes e do Mestre Verdelinho, depois cantava e dançava tendo a poesia como método — em harmonia com as artista da banda.

Telma César, banda e artistas convidadas

Foi bonito ver Telma César no palco do Arena junto a jovens talentosas — inclusive da dança. Era como se as jovens fossem a Telma César da época de banda Comadre Florzinha, no fim dos anos 1990, que não perdia um lance da apresentação de Mestra Virgínia. Faço alusão a imagem da mestra e da jovem porque a narradora é uma espécie de guardiã do tesouro da memória. Sem a arte de narrar, a transmissão da experiência vivida fica ameaçada. Pois, memória não é coisa pronta e acabada; é algo que se herda, se cria e se transforma — quase como um rebolinho de maniva. E Telma é dessas raras artistas narradoras, que nos fazem mergulhar no universo simbólico de onde viemos e somos parte. 

Termino esta resenha com as mesmas palavras de Ariano Suassuna, publicadas na Folha de S.Paulo, em 6 de junho de 2000: “Por tudo isso, longa vida a Telma César Cavalcanti e ao belo trabalho que está realizando”. Vida longa! E que continue levando ao público suas formosas composições de coco, samba e bainá. Elas nos servem de alimento. 

FICHA TÉCNICA — “Pedra de Raio ” (Teatro de Arena, 17/ julho/ 2022)

Telma César: voz, percussão, concepção e direção; Manu Preta: percussão; Carol Vilela: percussão, violão; Gabriela Ramos: contrabaixo; Gessyca Geyza: vocais e percussão; Wander Melo:  vocais e percussão; Artistas convidadas: Ana Gal, Benedita Duarte, Miran Abs, Joelma Ferreira, Valéria Nunes; Nicolle Freire: produção executiva; Amanda Môa: fotos; Glauber Xavier: vídeo; Moab Oliveira: Luz; Laércio Leão: som; srranjo de cordas na música “Fala roseira”: Norberto Vinhas; arranjo de cordas na música “Xô, xô meu Azulão”: Gustavo Finkler; Concepção de arranjo na música “Reino encantado”: Gustavo Finkler; apoio: Escola Técnica de Artes da UFAL — ETA/Ufal, Espaço Cultural da Ufal.