Domingo no Parque

Os autores de resenhas

Mesmo que a expectativa seja vã, o crítico prossegue obcecado, escutando discos e varando noites pensando em metáforas para traduzir os sons com palavras

31 de Julho de 2022, 15:29

Lúcio Verçoza é sociólogo, professor e autor do livro 'Os Homens-cangurus dos Canaviais alagoanos'

Músicos cultuados e bem pagos. Uma, duas, três, mais de dez gravações da mesma música e nenhuma delas ficava boa. Faltava algo, e ninguém sabia exatamente o quê. Um dos presentes, que estava apenas na condição de fã e espectador, viu o órgão Hammond encostado no canto do estúdio e pediu para tocar entre um take e outro. Recebeu uma negativa do produtor. Porém, quando o produtor saiu para atender o telefone, o jovem espectador puxou a cadeira e tocou no órgão acordes esquisitos, acordes de quem não toca bem órgão, mas que soaram perfeitos para a música que estava sem brilho. O jovem fã, de 21 anos, era Al Kooper, um guitarrista até então desconhecido. A música, que se tornaria imediatamente um clássico, era “Like a Rolling Stone”, do astro Bob Dylan. Dylan, quando ouviu o órgão tocado pelo desconhecido, pediu para ele continuar tocando e chamou os músicos de volta para o estúdio. O resto, bem, não é mais silêncio. É o som do órgão, da gaita, da voz anasalada e cínica de Dylan e da guitarra elétrica.

Ruy Castro certa vez disse que “escrever sobre música é a única alternativa para os que não são capazes de produzi-la”. Ele tem razão, é como quem escreve sobre literatura. Certamente os críticos literários trocariam toda a montanha de resenhas que já fizeram pela dádiva de escrever 30 páginas de um conto como “O Capote”, de Gógol, ou “João Urso”, de Breno Accioly. É que fazer literatura é muito mais excitante do que escrever sobre ela. Assim como é a música quando comparada à crítica musical.

'Que retire a resenha da estante somente para fazê-la girar na vitrola'/ Foto/ Lúcio Verçoza

Tenho o palpite de que todo crítico musical sonha em um dia estar na pele do Al Kooper: um fã que não era tocador de órgão e que, por ousadia e sorte, fez “Like a Rolling Stone” se tornar o que é. A sorte foi por Dylan ter sensibilidade musical suficiente para dizer ao estranho desconhecido: “continue tocando”. Al Kooper sabia que aquela era sua chance, assim como todo crítico sabe que escrever sobre músicas é uma forma de tentar fazer parte delas. Mesmo que a expectativa seja vã, o crítico prossegue obcecado — escutando discos e varando noites pensando em metáforas para traduzir os sons com palavras.

Do que os críticos realmente gostariam era que suas resenhas fossem cantadas em estádios lotados, balbuciadas por casais apaixonados, reproduzidas em alto falantes das salas de cinema, cantaroladas por uma família que vai à praia na manhã de domingo. No fundo, é esse o desejo oculto por trás de toda boa resenha. Que o leitor a escute e, no fim, peça bis. Que depois do pedido de bis, guarde a resenha na estante mais bonita da sala de casa e a retire somente para fazê-la girar na vitrola.