Filmes e Memórias

David Cronenberg vislumbra o horror corporal de um mundo neoliberal (selvagem) no futuro

O diretor canadense está de volta à ficção científica assustadora que o consagrou em filmes como 'A Mosca' e 'Scanners'

05 de Agosto de 2022, 12:56

Sebage Jorge é jornalista, poeta, músico e editor do site Alagoas Boreal

Do alto de seus 79 anos, o diretor canadense David Cronenberg nos surpreende mais uma vez. Concorrendo à Palma de Ouro em Cannes este ano, ele afirmou aos jornalistas que tinha escrito o roteiro de “Crimes do Futuro” (Canadá, 2020) há 14 anos. Há quase uma década, desde o drama “Mapas para as Estrelas” (Canadá/EUA, 2014) afastado da direção (fez algumas atuações em filmes canadenses e norte-americanos, incluindo a produção “Falling”, estreia como diretor de um de seus principais colaboradores, o ator Viggo Mortensen, protagonista deste inacreditável “Crimes do Futuro”), Cronenberg retorna a seu habitual cinema de horror corporal. Quem não se lembra de “Scanners” (1981), “A Mosca” (1986), “Gêmeos, mórbida Semelhança” (1988) e mesmo “Mistérios e Paixões” (1991, baseado no Naked Lunch de William Burroughs)? Ó deus, quantos mistérios e paixões este homem ainda nos empurrará pela garganta ou explodirá nossos cérebros com a imagem do terror que deve ser o futuro da humanidade?

Bem, não falemos em deus, pois que se trata aqui de um artista ateu, melhor, materialista, como mais uma vez em Cannes ele se autodenominou. “Eu não sou ateu, mas para mim me afastar de qualquer aspecto do corpo humano é uma questão filosófica. E há muita arte e religião cujo propósito é afastar-se do corpo humano. Sinto em minha arte que meu mandato é não fazer isso."

Viggo Mortensen e Léa Seydoux: a beleza está no interior e o 'novo sexo' é cirúrgico

É tudo o que você precisa saber antes de adentrar a sala do cine Arte Pajuçara, onde “Crimes do Futuro” estreou nesta quinta-feira (4) — se é que, realmente, há alguma necessidade de você se informar sobre qualquer coisa para mergulhar nesse universo sombrio e devastador que é o futuro do planeta traçado por esse mestre do cinema.

Depois do filme, ao lado do Pajuçara, fui tomar um sorvete caro e ruim (talvez por ser tarde da noite e o que havia por lá eram sobras). Ao chegar em casa, dei comida as minhas duas cadelas e fui dormir. E o que sonhei? Que dentro do meu corpo, uma enorme formiga se acomodava entre meu peito, estômago, braços e pernas. Não doía, mas, claro, me assustava. Como vou tirar isso de mim? A grande formiga preta se dissolverá e evacuará junto às fezes? Ou farei uma cirurgia? Como será isso? Não riam. O sonho onírico terrificante foi culpa do sorvete — não, não era tão ruim assim. Ora, a culpa é mesmo de David Cronenberg. Eu era o próprio Viggo Mortensen, o senhor Tenser, o artista performático Saul Tenser que expõe seus órgãos internos numa cirurgia pública, que é ao mesmo tempo o “novo sexo” e a arte do futuro.

O desconcertante Mortensen na pele do artista performático Saul

A política, a arte e o sexo são a mesma coisa. O que podemos esperar deste nosso mundo neoliberal selvagem e capitalista? O filme começa com uma criança sozinha comendo a lixeira no banheiro. Não o papel higiênico, nada disso. Ela come mesmo a lixeira, o plástico. E sua mãe, não tolerando mais a criatura transumana que gerou — seu DNA transformado permite a digestão do plástico —, sufoca-a sob um travesseiro. O pai, por sua vez, entrega o corpo do menino a Saul, que realiza uma inédita autópsia pública.

Arte e espetáculo. A moda da cirurgia estética que lhe expõe as entranhas — a beleza interior. Um futuro não muito distante pós-aquecimento global. Um mundo às escuras, em ruínas, quase ninguém por aí, as pessoas escondidas em seus refúgios ou em escritórios burocráticos do governo — como o “departamento de registros de órgãos humanos”. Meu deus, é demais para a minha cabeça. Impressionante e dolorido. Esse é o nosso destino, ao que parece. 

No filme, não há dor propriamente. Mas o horror humano plastificado e o sexo está em cada palavra dita, aliás, é uma obra de palavras, discurso. Sobre a arte literalmente cirúrgica do futuro. A língua (e o estômago) de Viggo Mortensen lambendo a si próprio enquanto Léa Seydoux, a sensual assistente (e amante?) Caprice lhe retira os órgãos sobressalentes — transumanos, esqueceu? A nova arte e o novo sexo. O mundo plástico, sem sangue e dor, cuja beleza está no interior. Para você vê-la, ou mostrá-la, precisa se abrir. Abrir o seu corpo. Assista e morra.